N?o sou seu inimigo, até que me trate como um inimigo, ou como um amigo.
I
Mercator suspirou, irritado. Como poderia ter paz, se n?o o ouviam?, reclamou para si mesmo. Ent?o, vendo os dois, soube que nunca seria deixado com seu próprio destino.
Devagar se virou e se aproximou dos dois, que o aguardaram, amea?adores, satisfeitos em seus sorrisos maldosos.
- Você nos abandonou, n?o fez o que tinha que fazer – acusou Trevas assim que Mercator parou, bem próximo.
- O que eu tinha que fazer?
- O que? Ora, estamos em guerra, e você...
- é a guerra de vocês, n?o minha.
- Como? – Trevas espantou-se. – Lutamos contra os nossos inimigos, contra os anjos, contra os seres dos pés das montanhas,...
- N?o! – interrompeu Mercator secamente. – Vocês lutam por poder para vocês, e nada mais. A luta de vocês n?o é a minha luta.
- Isso é loucura... Escurid?o, você ouviu o que eu ouvi? Eu sabia que ele n?o iria cumprir o acordo.
- N?o tenho contratos com vocês – rilhou Mercator. – Nem com qualquer outro ser, anjo, dem?nio ou deus, por miserável que seja.
Escurid?o examinava Mercator, os olhos frios e calculistas.
- Nos batemos naquelas cavernas, e perdemos tudo e...
- Se perderam tudo é porque seu inimigo te superou. Que diferen?a eu poderia ter feito?
- Para come?o de conversa, n?o era o meu inimigo, mas o nosso inimigo - retificou, os olhos sugestivamente em Trevas, o que n?o passou despercebido para Mercator.
- Quer dizer que eu tinha que atender os desejos de vocês? – estranhou. - Por que insistem nisso?
- Mesmo que n?o aceite, ou n?o acredite que fa?a parte, a verdade é que estamos em guerra, e todos estamos envolvidos. N?o tem como ficar neutro.
- N?o estou em guerra, e a guerra dos outros n?o é a minha guerra.
- Você nos deve muito – falou Trevas, a voz contida.
- Por exemplo... – Mercator já mostrava uma ponta de irrita??o. N?o gostava que ninguém ficasse lhe falando o que deveria ou n?o fazer.
- Fomos nós que o libertamos, como fomos nós que permitimos que viesse para esse mundo.
- Como fomos nós – enfiou-se Escurid?o – que aturamos essa sua ina??o, essa sua maluquice de ficar sussurrando sobre as montanhas.
- Sou eu que aturo vocês, que aturo essa ideia estranha de acreditarem que possuem as vontades de todos os outros seres e, pior ainda, que acham que possuem a minha vontade. E, se me libertaram, n?o foi por mim, foi por vocês, para me fazerem arma, para ser usado por vocês para os seus propósitos.
- Você nos deve obediência – ralhou Trevas.
- Para alguém se sentir dono da vontade de alguém, esse alguém deve aceitar se submeter. Vocês acham mesmo que me submeti a vocês?
Trevas n?o se conteve. Com enorme rapidez atacou Mercator, que já estava de sobreaviso. Ele simplesmente se esquivou num giro para a direita, puxando Escurid?o para frente de Trevas. O baque dos dois foi surdo, e após se desvencilharem, se postaram um de cada lado do sombra, a vontade de destruir exalando forte dos dois. Mercator os examinava em guarda, numa postura tranquila e confiante, até mesmo desafiadora.
Os três sabiam que n?o havia mais como ignorar a sensa??o de que o combate era inevitável.
Como um corisco Mercator atacou Escurid?o, que se distraíra por alguns segundos preciosos. A garra se enfiou perto do ombro numa estocada dolorosa.
Escurid?o girou, descendo alguns centímetros no giro. Colhido de surpresa Mercator n?o conseguiu escapar a tempo, e um lanho profundo surgiu em seu flanco direito pelo risco desferido pela adaga. Mercator se afastou rápido. Ignorando a dor olhou com desdém para os dois.
- Ent?o vamos acabar com isso de vez, pois n?o aceito que me envolvam em seus planos, quando ignoram os meus.
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- E quais s?o os seus planos, traidor? – Trevas cuspiu com violência.
- Só tenho um, que é o de n?o servir a ninguém – falou avan?ando para cima de Trevas.
Trevas suportava o ataque enfurecido do gigante quando Escurid?o atacou. Mercator se defendia, mas os dois, de forma terrivelmente eficiente, iam ferindo-o.
Mercator soube que eles, agora senhores da situa??o, se divertiam torturando-o, minando lentamente suas for?as. Respirou fundo.
- Talvez, talvez deixar tudo se acabar, se desfazer... Que finalidade eu tenho? – pensava enquanto ia se defendendo automaticamente dos dois. Para ele, sentia, seria até mesmo um alívio deixar de existir, porque n?o conseguia ver uma finalidade para sua existência, coisa que até mesmo duvidava de quando em quando. – Talvez eu seja um sonho, a imagina??o de um deus doente e louco, ou até mesmo o sonho de um dem?nio. Sem corpo e sem consciência sou eu, ent?o?
Com grande agilidade esquivou-se de um golpe mortal endere?ado por Trevas. Usando toda sua for?a descarregou imensa energia em Escurid?o, que rodopiou no espa?o. Voltava-se para atacar Trevas quando sentiu um impacto violento, rapidamente acompanhado de dor excruciante. Pensou que morrer até que seria bom, uma forma de deixar toda aquela dor para trás.
Mas, tomado de ódio, recolheu toda sua dor e, com um impulso violento, avan?ou e cravou as garras na cabe?a de Escurid?o. Num rodopio girou por sobre sua cabe?a e caiu-lhe às costas. Mas n?o teve tempo para destruir Escurid?o. Num tempo desprezível Trevas o arrancara das costas de Escurid?o e os dois, agora, finalmente, o imobilizaram.
Mercator usou de toda sua for?a e determina??o, e sentiu que tudo estava acabado. N?o conseguia se mexer nem um milímetro que fosse. Eles dominavam completamente seu corpo.
Jogou a cabe?a para trás e riu alto e profundamente, em desafio, ao ver Trevas levantar a espada e se preparar para atingir sua garganta com toda sua for?a.
Os olhos de Trevas se incendiaram, concentrando energia, sentindo um prazer imenso na morte que ia se presentear.
De forma súbita e incompreensível Mercator sentiu algo estranho, como uma paz, uma tranquilidade perturbadora. Lembrava-se de ter sentido algo assim, muitas eras atrás, quando ficara preso numa pequenina luz.
Girou a cabe?a e olhou por sobre a espada e os ombros de Trevas, e nada havia ali.
No entanto, sentia um influxo de energia, uma renova??o perturbadora.
Para surpresa dos dois Mercator girou com enorme facilidade, colocando Escurid?o no seu lugar. Um grito estridente e irado de Escurid?o ecoou quando a espada riscou todo o peito do dem?nio, de um ombro a outro, uma onda vermelha se irradiando dolorosamente a partir dali. O golpe foi t?o potente e cheio de energia que o corpo de Escurid?o foi jogado vários metros para a esquerda, o sangue negro e esfuma?ado se esvaindo e marcando sua trajetória. Escurid?o olhou para seu peito, os olhos presos na profus?o de sua essência que escapava do ferimento. Com um tranco poderoso cresceu uma energia em si mesmo, estancando o dreno de suas for?as, os olhos fuzilando Mercator que observava os dois com intenso prazer ao ver a confus?o nos olhos deles.
Em seus olhos viu que eles também tinham entendido o que acontecera.
- Ent?o estávamos certos quando a você, Mercator. Você se tornou um lacaio dos anjos – desferiu Trevas, rodando a cabe?a para os lados, procurando ver onde os anjos estariam, o semblante corroído de ódio e rancor.
Mercator n?o falou nada, apenas os examinou com desprezo.
- N?o sou lacaio ou seguidor, nem de vocês nem de qualquer anjo idiota.
- Essa energia que recebeu, sabemos que foram os anjos que lhe deram.
- Que tenham sido eles, n?o me importa. Em nada altera o que penso. Se esperam gratid?o, ou servid?o, ou amizade, tal como vocês esperavam, ficar?o esperando por um tempo mais longo que a eternidade.
- N?o sei que acordo tem com eles para deles se servir, mas isso vai acabar aqui... – grunhiu Escurid?o, segurando a dor que sentia.
Ent?o eles deram um grito estridente, e de todos os lados vieram sombras e mantas que lentamente foram tomando posi??o para cercá-los, procurando formar como que uma esfera.
- Vê? Aqui será o local onde irá morrer, por se atrever a nos enfrentar.
- N?o importa quantas eras ir?o passar, mas um dia todos iremos morrer – falou Mercator com um sorriso cínico.
Trevas examinou com curiosidade o semblante do gigante. Havia tranquilidade e uma determina??o férrea em seu semblante. E viu que era uma tranquilidade perturbadora e... perigosa.
Se preparava para um ataque quando tudo se precipitou.
Sem qualquer aviso Mercator arremeteu direta e incompreensivelmente contra Trevas e Escurid?o, que esperavam que ele atacasse uma das bordas de sombras, falsamente marcadas para serem frágeis. Mas, quando estava bem próximo, desviou com extrema violência e se bateu contra dois grandes sombras que estavam em seu caminho, quase sobre os ombros de Trevas, que com pequenos guinchos se desfizeram no ar escasso e frio, abrindo a esfera que haviam construído.
II
Mercator aguardou durante um bom tempo, preparado para resistir, anjo ou dem?nio que se aproximassem. Porém, tudo ao redor estava em paz. Lentamente foi se tranquilizando, deixando a mente se espraiar.
Ent?o, bem devagar foi descendo, até ficar flutuando sobre a boca de um vulc?o. Um fumo grosso e relampagos de quando em quando se despregavam dele, e o envolviam e o escondiam. Suspirou fundo, até que os viu. Ao longe podia sentir três anjos, que apenas o observavam.
Muito lentamente saiu da grossa nuvem de fumo, se pondo totalmente à mostra, a vontade voltada para os anjos, que n?o manifestaram qualquer inten??o de se afastar ou se aproximar, o que o deixou mais tranquilo.
Suspirou novamente.
- Agrade?o – falou para a distancia, onde eles permaneciam, - mas n?o esperem nada de mim, porque nada vou oferecer a n?o ser dor e destrui??o.
Lentamente, sob o ar enovelado e venenoso que escapava do vulc?o, Mercator se transmutou, dando-se um corpo de formas humanas.
Ele era imenso. Era escuro, as asas marrons, o corpo forte como uma torre meio avermelhada. Seu rosto era impressionante, duro e um pouco quadrado. E havia aquela íris totalmente vermelha em tons bem escuro, como sangue coagulado, o que a disfar?ava bem na esclera totalmente preta, onde, estranhamente, a pupila era facilmente identificada. Espalhados por todo o seu corpo se mostravam estranhos símbolos rúnicos em baixo relevo, que pareciam enegrecer de acordo que seus pensamentos se tornassem mais sombrios.
Devagar, saboreando cada movimento, flexionou as grandes asas de couro marrom.
> Se sou sombra, ou anjo caído, n?o importa, nem a mim nem a qualquer outra criatura ou qualquer deus – falou desfraldando completamente as longas asas de couro. - O que importa é que nem sombra, manta, anjo ou ser eu sou. Sou novo, sou velho, nascido do lado esquerdo do Trov?o, onde maldade e bondade nunca foram separados. Eu sou, eu existo – ribombou no céu antes de desaparecer.